quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Com ou sem destinatário. Dilemas de um náufrago.

Então, não sei se isso é um email ou é um conto. Talvez seja email, mas emails são espalhadores de novidades, como se aspirassem do ar esses instantes que pairam por aí, distraídos, meramente acontecendo ou acontecidos, e depois se soprassem nos ouvidos e olhos alheios, todos de uma vez. Como um espirro, mas com uma imagem metafórica mais higiênica que um espirro.

Mas aí então se isso for um email, ou espirro, corro o risco - ou ando o risco, posto que não pretendo apressá-lo - de te deixar em estado de grande frustração, dessas de pessoas que abrem lata de feijão enlatado e recebem giz de cera que nem cozido direito foi. Digo isso porque não pretendo dizer nada de novo. Não porque o novo não tenha acontecido, ou que eu não tenha visto um novo a minha esquerda agora a pouco, do lado de outro não tão novo assim. De fato, tem um novo agora mesmo no teto, junto com outro bem velho. Tenho pilhas de novo guardadas em uma caixa de sapatos debaixo da cama e semana que vem ou na outra ainda pego um aspirador pra tirar a poeira de tudo aquilo que é novo.

Não. O problema é que é novo demais para ser jogado assim, como balde de tinta no papel, tudo de uma vez, como que saturando o velho com tudo o que ele não é, ou nele não se vê, ou que por ele não passou e que ficou entre a rua da casa verde cruzando com o senhor sentado no banco não tão verde da praça na hora em que a árvore não fazia sombra em cima dele e por isso o chapéu. E então não dá pra dizer que o homem da imigração fez cara feia por cinco minutos antes de me deixar passar, ou que o rapaz sentado do nosso lado no mirante de Granada era brasileiro o tempo todo e se a conversa não tivesse deixado uma brecha ele não teria sido brasileiro, ou que a rua que no livro do Joyce era rua de escritórios de advocacia trombou com bem uns cem anos e caiu no chão com cara de rua de pubs de música irlandesa tradicional, dessas que se inventam para os turistas que nem cair bêbados no chão eles caem direito. Não dá pra falar de whisky, the jar, Molly Malone ou dirty old town porque já seriam explicações conceituais e isso já extrapolaria a dúvida inicial entre email e conto porque já seria digressão teórica, e entre baldes de tinta e um faire-comme-si de desenhar o mundo, ao menos a aleatoriedade dos baldes é honesta em relação a sua própria falta de vontade de deixar de ser balde, e tinta, e parede (ou papel, não me lembro mais se a analogia antes era com parede ou papel. Enfim).

Então seria um conto. Mas conto também não pode ser se você me pediu muito claramente um email daqueles que só eu sei escrever e eu não posso voltar de mãos vazias, ou com a mão errada, ou uma nas costas e a outra atrás, ou as duas mãos na frente, ou com uma no teclado e a outra gesticulando coisas incompreensíveis para quem não está ouvindo o que toca no meu fone de ouvido, muitas vezes aliás sem fone e que nem precisa de ouvido e que agora é Legião e é estranho ouvir Faroeste Caboclo como se fosse música de elevador em Lisboa. E de qualquer forma não é conto porque não conto contos em emails, e isso, se deixarmos toda a divagação metafísica e transgressões poéticas de lado, é sim um email, tanto que quanto mais eu escrevo, mais essa barrinha vertical piscante se move para longe da palavra, como que fugindo, ou como que se transformando em letra, e outra letra, e mais uma, mas sendo sempre a mesma barrinha, jamais escrita de fato, jamais ela própria.

Ser tudo menos si próprio. Bom, nunca acreditei muito nessa coisa de um eu que fosse mais eu que os outros, que os outros eus tem menos quantidade de eu que eu mesmo, porque enquanto aqueles eu comprei parcelado, chegou atrasado via correio e já está cheio de pó porque alguém esqueceu de regar ou não podia lavar com água quente, o outro veio embrulhado de aniversário que abri no natal e é de tradição de família, foi usado pelo bisavô na guerra e deu sorte pro tio que usou de amuleto enquanto eu perdia no jogo de amarelinha. Mas a verdade é que nesses trancos, barrancos e ladeiras européias, já deixei muitos eus por aí. Aliás, não sei se você me reconhece enquanto escrevo. Aliás, não sei se escrevo para ver se eu mesmo me reconheço, já que escrever é mesmo como espelho que eu mesmo pinto do meu próprio reflexo escrito. Não sei, podemos ver, quem reconhecer o outro primeiro ganha. Aliás, nem repara, fiz a barba esses dias, mas foi na tesoura mesmo e acho que ficou meio estranho embaixo. Juro que também não reparo que você começou o email com "oi" quando deveria começar com "então", ou nem começar que o meio e o fim é sempre o que temos de mais íntimo.

Então o que eu te mando é um grande indefinido. Para você subverter como quiser. E mandar de volta moldado, remontado e embalado pra viagem.

Se eu terminar com beijos e saudades, vira email. E se tiver pontos de exclamação fica pouco literário.

R., abreviado, que você completa depois. Ou lê nas entrelinhas.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Oito bicicletas roubadas

Foi assim, no meio da conversa mesmo e que eu nem me lembro em que ponto estava até porque tenho o mau hábito de esquecer as coisas interrompidas. Estávamos os três num desses bancos de praça em Aveiro e não tem porque dizer que ele era branco ou que tinha cara de banco de praça para dizer que fomos interrompidos por esse senhor de idade que já estava sentado lá antes de nós e olha que a gente já devia estar por ali há bem meia hora. Não sei se olhamos para ele antes de ele começar a falar, acho que não, foi assim do nada mesmo que Senhores, aqui em Portugal pede-se licença antes de se sentar, pede-se licença antes de se levantar, e portanto eu vos digo. Licença. E acho que teve até exclamação no final, mas devo dizer que ainda não estou suficientemente adaptado ao sotaque português para interpretar a subjetividade de suas intonações de voz.

Tem mesmo umas palavras que servem de anestesia, licença, faz favor, importa-se, desculpa lá, mas o fato é que somos estorvos. Pedaços perambulantes de desordem. E então fomos em oito de uma vez perambular de bicicleta, que em Aveiro se diz buga e se aluga de graça na praça central da cidade. Ou não era central, não sei, acho que era, eu pelo menos não faria um negócio de aluguel de bugas na periferia do Aveiro. E então quando percebemos tínhamos quinze minutos para andar de buga e aí não sei, foi pouco, buga não se pedala, se contempla, e de qualquer forma o Rhaul disse que aqui é assim mesmo, a gente pega as bugas e só devolve na semana seguinte, mas Rhaul, tem certeza, tenho, faço isso direto, mas Rhaul, são oito, problema não, buga, sim, buga. Então tá.

No meio do caminho uma senhora de idade que passava pela calçada do outro lado da rua pensava que provavelmente precisaria de mais ovos para o pequeno almoço do amanhã daquele dia e teria mesmo se lembrado ainda que o leite tinha acabado se a linha de raciocínio mais ou menos circular e viciosa que nos atinge no final da vida não tivesse sido brutalmente interrompida por seu próprio grito, ei, vocês não sabem que isso é proibido, não respondi e já imaginei o escândalo, denúncias de bugas roubadas, brasileiros deportados de Portugal, quebra de relações diplomáticas, e ela continuou, ora pois, não percebem que estão na contra-mão, é proibido, e de novo, creio que ouvi um ponto de exclamação. Sim, acho que era. Provavelmente, ainda mais agora, repetindo o evento na minha cabeça.

Como não trancamos as bugas com os cadeados que esquecemos de pegar, Rhaul, cadê os cadeados, putz, esqueci de pedir, pois é, então colocamos as oito dentro do corredor de entrada do prédio do Rhaul. Apesar de estreito, ainda restou espaço suficiente para o trânsito de moradores e a cena das bugas estacionadas dentro do prédio foi tão boa que tiramos bem umas quatro ou cinco fotos, uma com todo o pessoal, depois Lucas fez um rosto estranho na frente, depois saiu tremida demais com o flash e depois o senhor que morava no quarto andar e tinha uns setenta anos de idade começou a gritar que o corredor do prédio não era pista de corridas. O processo de elocubração desta frase no cérebro deste senhor deve ter sido interessante, pois eis que ele acessa uma parte do cérebro responsável por deslocamentos semânticos geradores de sentimentos cômicos e, no instante seguinte, narra estes sentimentos cômicos com um olhar de incômodo ou raiva que é algo maior que incômodo. E pensei que talvez se pedissemos licença estaria tudo bem, mas acho que não pedi e só ouvi o Rhaul, senhor, nós queríamos devolver as bugas mas não tivemos tempo, podemos tirar as bugas daqui agora mesmo, mas eu moro aqui há quarenta anos e nunca vi nada assim, e esse barulho todo que vocês fazem, mas senhor, desculpe, foi um erro mas vamos retirar as bugas agora, tudo bem, vocês podem devolver as bugas amanhã, mas eu moro aqui há quarenta anos e não façam barulho, ok senhor, desculpe, obrigado, eu moro aqui há quarenta anos, até mais, quarenta. E nesse último acho que foi sem exclamação, mas não saberia dizer já que havia subido os cinco andares de escada já há alguns minutos naquela hora.

Eu e mais três dormimos fora e fomos ao Rhaul de manhã não tão cedo e provavelmente rimos levemente ao vermos as oito bugas ainda lá, e vimos os degraus a nossa frente, cinco andares, e veio uma voz ao longe, a polícia, ahn, a polícia e essas bugas, hein, e era uma senhora de idade do quarto andar, esposa do senhor do ontem daquele dia, e é um absurdo, essas bugas aqui dentro do prédio, isso é proibido, subindo escadas, eu já chamei a polícia, subindo escadas, e ainda ficam fazendo barulho a noite toda, bom dia dona, eu já chamei a polícia. E eu pensei de novo em pedir licença, mas resolvi que usaria desculpas mesmo, que foi o que o Rhaul tinha usado no dia anterior. Tentei puxar na cabeça as frases exatas do Rhaul, algo como desculpa lá senhor, é que não deu tempo de devolver as bugas mas vamos tirá-las daqui assim que possível, então repeti com pequenas adaptações, desculpa lá dona, é que não deu tempo de, desculpa nada que eu já chamei a polícia. E aqui eu sei que teve exclamação. Subi as escadas.

Algumas coisas não se sabe. Não se sabe bem quanto barulho foi que o casal do quarto andar, que mal conseguia ouvir nossos vastos e variados pedidos de desculpas, ouviu na noite anterior tantos ruídos em um apartamento que esteve vazio na maior parte da noite e aliás, acho que as escadas do prédio são daquelas que não fazem nhéc-nhéc transformando cada pé em degrau em uma torrencial redundância nhéquica. Também não se sabe se nhéquica existe. Não se sabe ainda como tiramos o Rhaul tão rápido do chuveiro, bom, talvez batendo insanamente na porta do banheiro, Rhaul, Rhaul, a polícia, sai daí, Rhaul.

Essa cena acho que vale ser contada da perspectiva do Rhaul, que entrou no banho e deve ter retomado alguns cálculos em sua mente, sim, posso tomar banho agora, esperar mais dois tomarem banho, depois praia, antes devolver as bugas, antes o almoço, sobrou de ontem, molha uma perna no chuveiro, lê o bilhete na porta que a francesa deixou e que diz porta, e na banheira dizendo banheira, e no espelho, espelho, espelho retrovisor, retroviseur, molha a outra perna, Rhaul, a polícia, quê, a polícia, a velha, as bugas, sai daí, desliga a água, seca uma perna, seca a outra perna, vai secar o cabelo e as costas mas não precisa.

Oito pessoas desceram cinco andares de escadas muito rapidamente e acho que o Lucas ainda olhou para os lados para ver se a polícia não estava na direita, ou na esquerda, talvez na nossa frente, estranho, Aveiro é pequena, a polícia não deve ficar longe, mas logo oito bugas estavam nas ruas novamente.

Voltamos a pé.

Se a polícia veio, não estava mais lá. Talvez tenha passado por lá um policial, já nos seus quarenta anos, talvez tenha até vindo de buga, uma de ontem que não deu pra devolver, e ouviu a história, mas minha senhora, não há cá nenhuma buga, mas como, eu vi, eram oito, estavam bem aqui, mas minha senhora, a senhora tem estado a dormir bem ultimamente, sim, tenho dormido bem, e o seu marido, está bem, sim, ele mora cá há quarenta anos. Sei que subimos os cinco andares de escadas com o maior silêncio que oito pessoas podem fazer quando sobem escadas que não fazem nhéc-nhéc. E acho que já estávamos no meio do caminho entre o quarto e o quinto andar. Sim, no meio do caminho, entre o quarto e o quinto degrau, naquele momento em que nenhum dos pés está em degrau nenhum e que dura tão pouco que nem parece que nos livramos do chão por algumas frações de segundo. Ali, exatamente ali, quando a senhora do quarto andar abriu a porta. E abriu com exclamações. Muitas. Pá. Os degraus que faltavam foram feitos corridos, saltando de três em três, e aí deu pra sentir os pés fora do chão de vez em quando.

E acho que aí fizemos barulho. Desculpa lá.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Inventário

Começou com o garfo, a faca e a colher que com as mãos não dava ainda que na primeira noite a manteiga tenha entrado no pão na base do dedo e o suco bebido na garrafa. Veio também a xícara e eu subverto longas tradições de família todos os dias no suco que bebo de xícara e que minha boca ainda teima em esperar que venha quente como em qualquer coisa de xícara.

Essas eu comprei no chinês. Acho que quando não se sabe onde comprar, compra-se no chinês. E veio de lá a panela também, que chamei de tacho com orgulho de um lusófono já bem articulado às peculiaridades da língua local já no terceiro dia de Lisboa. Mas o vendedor era chinês e não sabia o que era tacho nem muito menos panela. Disse que não tinha e eu fui embora perguntando para uma portuguesa na rua, faz favor, você sabe onde se vendem tachos, sim, claro, aqui no chinês mesmo, mas me disse que não tem, mas tem, ora pois, se não comprei um aqui ontem mesmo?

A panela ou tacho de cinco euros veio com uma grade estranha que não sei para quê serve e acabou sendo maior do que a minha fome. Ou do que o meu arroz ou, enfim, das minhas duas xícaras de água que evaporaram antes e a panela tem uma mancha de queimado até hoje. Cicatriz gastronômica, quem sabe. A frigideira só foi vir alguns dias depois após um hambúrguer frustrado que quase não sobrevive à panela gigante que tentei travestir de frigideira. Nem conto o que tentei fazer com o feijão só de pensar nas palavras que não conheço que a história exige de mim para ser contada. O que conto é que a frigideira veio numa feira do Carnide com mais uma frigideira menor dentro. A maior eu uso como prato de vez em quando, quando os tupperwares, também do chinês, estão ocupados.

Pratos mesmo eu não comprei. Do mercado vieram logo esponja, detergente e papel higiênico que comprei aos montes e depois de um mês me dei conta de que só tinha usado uma vez que essas coisas eu preferia fazer no shopping perto de casa e um dia ainda desenvolvo essa narrativa melhor para transformá-la em alguma espécie de protesto simbólico contra o consumismo mas por ora vou usar o argumento de que era mais prático mesmo e que com o tempo fiz até algumas descobertas, percebi que a música do shopping se repetia todos os dias e sempre no mesmo horário. E comecei a achar que os seguranças olhavam para mim, entrando e saindo, todos os dias, sem comprar nada, às vezes parando em um sofá para ler Saramago que em casa não dava. Me imaginei sendo expulso do shopping, senhor, desculpe, você não pode vir ao shopping somente para usar a casa de banho, você precisa consumir algo, mas eu consumi, comprei um cartão telefônico na semana passada.

Sim, teve o cartão telefônico de cento e vinte minutos que foi embora em vinte depois de trezentas e setenta ligações para anúncios de jornal enquanto eu procurava quarto para alugar. Aliás, seriam cento e vinte se fossem ligações para o Brasil. Para celulares em Portugal, eram só vinte. Depois ainda veio outro cartão que comprei em Évora para ligar pra Bia pra saber onde que eu tava, sim, em Évora, mas praonde vou, Rua do Raimundo, ok, chego lá daqui a pouco, e cheguei depois de um pouco mais porque a Rua do Raimundo ficava do outro lado e não desse.

Então veio o celular que na verdade é telemóvel e que foi o mais barato e que desliga sozinho de vez em quando enquanto eu uso, talvez por greve ou rebeldia que pode sinalizar uma não distante revolução geral dos aparelhos contra os seres humanos. Uma tesoura eu comprei esses dias no chinês por causa da barba porque tesoura trazida na mala do avião era potencial arma terrorista, nunca se sabe. E sim, teve o caso do tênis que não foi nem que tenha aberto algum buraco na sola, é que ele rasgou mesmo. Sabe ali, onde nunca rasga. Pois é. Comprei outro numa C&A que sim, existe em Portugal. Alguns diz em uma loja, não lembro qual. Ele dói no pé esquerdo mas não no direito, o que pode ser uma inclinação política ou algum fator homeopático, não sei ainda. E alguns dizem que é igual ao anterior.

Desodorante ainda não precisei comprar. Os estudantes de intercâmbio recebem um. Dentro de um kit que vem com um manual da faculdade e uma bola de borracha, dessas antiestresse.

Talvez seja esse, afinal, o inventário real das coisas necessárias para um estudante brasileiro em Portugal. Depois de fazer e desfazer malas, trazer o que tinha que vir e deixar para trás aquilo que, de tudo o que nós somos e que guardamos na forma de tralha de nós mesmos, tinha que ficar. E que, de tudo e tanto que ficou, tinha duas coisas que tinham que ser repostas, sei lá, preciso de palavras grandes aqui então vou soltar um pedras refundantes da nossa existência. Aquilo que reiventa a nós mesmos no além-mar. Um desodorante e uma bola de borracha antiestresse, porque sem isso, ah, sem isso não dá.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Picotando pedaços de pessoas

O problema de se ficar sem escrever é ir acumulando coisas a serem escritas e que claro que não acumulo nada na memória ou já teria transbordado a dias e alagado Lisboa com histórias não ou mal contadas. E mal contadas é pior, porque são essas as que ficam zunindo depois nas nossas cabeças, passam por cima das outras poque querem ser contadas de novo, se transformam em obssessão porque é só com elas que nossos cérebros se ocupam já que a vergonha da história contada de forma travada e gaguejada e torta e abreviada e recortada e picotada onde não devia, essa vergonha não dá pra aguentar. E vira obsessão mesmo e na memória realmente não dá pra guardar nada que não seja obsessivo. Aliás, começo realmente a acreditar que memória e obsessão não são muito mais do que sinônimos e se escrevo isto agora de memória é porque estou obcecado.

Com o que não me obceco eu esqueço, então largo por aí no mundo pichado em cadernos, anotado em muros, rabiscado no papel do meu bolso que de tanto se encontrar e se perder nos alçapões obscuros das minhas calças parece que já pouco nele se encontra e muito mais se perde. E de qualquer forma, já é tanto anotado por aí que entre procurar por tudo e me dar conta de que serei forçado pelas circunstâncias a escrever um livro, prefiro o conforto do meu esquecimento que me faz escrever pouco. Um blog, no máximo.

E por isso agora parece que não sei o que escrevo. Me faltam obssessões talvez. O que não é muito diferente de não se lembrar de nada. Verdade que as aulas começaram, apesar de saber que isso vai necessariamente entrar em contradição com a minha próxima frase que dirá que não, que as aulas ainda não começaram, e que começaram as esperas frustradas por aulas que não começam já que aparentemente alunos e cadeiras e mesas e papéis e canetas não começam aulas. Professores começam aulas. Ou não e aí fica pra depois, e fica pra mim disparar em estudantes incautos tentativas mal pensadas e impulsivas de fabricação instantânea de amigos baseado em tudo aquilo o que nos une e então, parece que não vai ter aula hoje, pois é, acho que não, você soube de alguma coisa, não, mas já é a segunda que eu não tenho nessa semana, parece Brasil, pois é, é tudo igual, e você vem de fora também, sim, venho da França, ah, moi je parle um peu de Français aussi, eh oui, donc frase ininteligível, hm, mas se você puder falar mais devagar, ah, claro, bien sûr. A húngara com quem troquei três ou quatro palavras no primeiro dia continua me dando oi e tchau nas três vezes mais que nos encontramos mas sem novo acúmulo de palavras com as quais eu possa fazer alguma coisa, sei lá, cinco palavras já dá pra moldar um princípio de personalidade e aí eu já imagino o resto e faço qualquer coisa com ele. Me imagino discutindo o livro do Chico Buarque com o resto, falo que parte da história se passa em Budapeste, sim, que coincidência, e não é que tenho o livro aqui comigo na mochila agora mesmo, ah, verdade, posso ver, claro, quer que eu leia para você, posso traduzir alguns dos trechos. Ou brigo com esse resto porque ele não tem nada a ver comigo, e me prendo à outra que era francesa e pra quem fiquei olhando ontem por bem uns três ou quatro segundos sem ter certeza se era ela, e na verdade já sabia que não, que não era ela, quando descobri que era porque ela me disse oi e eu respondi com um oi que fingia surpresa, mas como ela é francesa deve ter pensado que é algum tique da cultura brasileira da qual ela ainda pouco conhece, quem sabe.

E assim vamos inventando qualquer razão para falar com qualquer pessoa, e a falta de lugar na sala de computadores pode ser mote para uma profunda amizade de quarenta e sete minutos, e a outra que me parou para perguntar se eu sabia se ia ter aula de antropologia do espaço teve que me aguentar falando por quinze minutos sobre os formatos das aulas nas universidades brasileiras e o quarto que posso conseguir ou não na Martim Moniz que é um bairro com grandes tensões sociais e étnicas não é, sim, verdade, mas não chega ser tão perigoso se você não provocar até porque de madrugada eles já estão bêbados, claro, bêbados, não provoco. E eu nem fazia a tal cadeira de antropologia do espaço.

Sei que nisso são quinze, vinte, cento e oitenta e sete pessoas com quem vou trombando e construindo cento e oitenta e sete novas possibilidades de eu. Como um reinício constante de mim mesmo, reinventado em cada esbarrão. E fico aqui sem saber quanto de mim realmente saiu naqueles trinta segundos ou meia hora e meia, já que o eu, que eu saiba, pra ficar pronto precisa ficar de molho por horas e horas e até dias e meses. Mas não, que quem eu vou conhecendo anda virando a francesa que estuda literatura portuguesa e que tem nome que fica feio em português, a austríaca que morou na Bahia e fala português bem e que estuda linguística mas parece saber um pouco também de antropologia e pena que não estudei linguística para poder levar a conversa mais adiante, e da portuguesa que acha importante que se misture teatro com antropologia e que eu acho que sim pois que temos que encenar muito para parecermos com qualquer outra pessoa que não somos quando saímos para conhecer o mundo dos outros, que é o que o antropólogo faz. Teatro.

E ela riu. E ainda conversamos um pouco mais até que sua aula começou, com o atraso de sempre desses professores portugueses, sim, é verdade, sempre atrasam, e que então agora ela se despede de mim levantando a mão já a alguns metros de distância com um aceno que dura um segundo, talvez um segundo e meio, e sabe-se lá se nos veremos de novo. Aliás, será que consigo refazer o rosto dela na minha mente? Tenho que conseguir, falei com ela há dez segundos. Mas não, parece que não, fica meio borrado. Depois tento me lembrar de novo.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Entrando com um tanque em Évora

Vim para Évora porque já estava ficando difícil aguentar a cama do meio das conversas sem sentido e de argumentações falhas da casa da dona Manuela, e porque a novela da TV da cama da esquerda tinha mais controle do que deveria sobre meus ouvidos e também porque sei lá, tinha que ir para qualquer lugar algum e Évora fez sentido por dois segundos ou três e no que vi já tinha o Tejo debaixo de mim.

E vim como que em uma invasão e sinto que até agora sou como que um tanque de guerra contra Évora indefesa. Pois que quando cheguei por aqui no domingo de tarde quase noite Évora era cidade de prédios velhos demais, com ruas estreitas demais para que se passasse sem que se tapasse o resto de sol de quem vem e que só não era mais estreito e apertado que o silêncio que esse sim esmagava qualquer passante com sua falta de qualquer coisa de barulho que deve ser patrimônio histórico ou coisa qualquer que o valha. E eu entrei com aquelas malas de carrinho de mão, atormentando os paralelepípedos da cidade e ali não é que eu fui barulhento, mas é que nisso de perder e recuperar dia após dia aquilo que sou, e que já fui perdido, turista, brasileiro, estudante, entediado e dormindo, ali eu era barulho. E só barulho, que as pessoas olhavam pela janela curiosas e voltavam os olhos de volta para qualquer coisa que faziam que produzia aquele silêncio artesanal que eu quebrava. A cada paralelepípedo.

E invadi casas de pessoas que agora me hospedam, e quartos de quem queria privacidade, e deitei com meu tanque no sofá do lado da cama de uma amiga e com os lençóis do outro que me emprestou e tendo a mim mesmo de travesseiro. E meu tanque se virou na cama durante a noite, e acordava a vizinhança a cada centímetro de sofá percorrido, tanto que eu mesmo com ele só acordamos depois de todo mundo.

E agora, abandonados que fomos pelos que acordam cedo demais, estamos livres para passar por cima de Évora e começar o processo de demolição.

A não ser que tenha algo melhor pra fazer. Parece que tem um filme do Scorcese de graça às 22h. Com sorte, encontrarei seres vivos por lá.

sábado, 15 de setembro de 2007

Cama do meio na casa de Dona Manuela

Não sabia o que era que me incomodava nos primeiros momentos de habitante da cama do meio do quarto da esquerda depois da porta de entrada do apartamento da dona Manuela e que tem um cômodo estranho, um cubo, eu diria, desses de madeira, antes da porta e que já quebrou meu joelho duas ou três vezes.

Pensei que era isso de não saber onde as coisas estão ou onde ficam. Porque de tudo o que não ficou em Brasília, de todas as Brasílias e Brasis que eu não troxe na mala ainda que sem saber bem porquê, aquilo pouco que veio tinha que sair e agora queria ter lugar. E se enfiaram em armários, armários de baixo, armários de cima. Sim, porque aquilo não tem outro nome, são armários, armários e também armários. E o que veio já não sabia mais onde estava, e eu não sabia mais onde que eu tinha me colocado, e isso foi estranho e quis ir embora no dia seguinte por algumas horas.

E talvez também porque tinha dois caras dos meus dois lados pois que a minha era a cama do meio e achava que não iria conseguir falar e não-falar com duas pessoas ao mesmo tempo. Dessas que trabalham e que não entendem piadas de estudantes de vinte anos e riem das minhas ironias depois de longas pausas em que ainda não sei se posso ser agredido nos próximos instantes, e sei que vou ser quando minha ironia sair meio torta demais para cariocas que moram a vinte anos em Portugal ou para portugueses do Alentejo que não suportam que os outros façam com que ele repita o que ele disse mais do que meia vez. Não o culpo, os diálogos são grandes fábricas de redundância.

Mas como podem ver, já os conheço quase como se fosse ontem, e tanto que já sei de um que quase já matou outros, que era militar e que queria atirar no Figueiredo quando o avião dele subia, e de outro que trabalha aqui e mais pra lá também daqui um dia qualquer desses e que é dono da verdade, pois que a comprou um dia desses ou levou quando ninguém estava olhando. Aliás, os dois são. Eu só concordo. Ou digo que talvez. É fácil ser respeitado. Tão fácil que é só dizer que sim ou que talvez, quem sabe, é até viável, e quem se importa com meus nãos internos. Servem de nada mesmo.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Eu, em algumas ruas de Lisboa

Pois bem, parece que o lá já se transformou em cá e que, se ainda não se as margens do rio Tejo estão a direita virando a esquina ou se é mesmo só pra seguir reto toda a vida, já posso lhes informar, a todos, que a Rua Andrade Corvo fica perto da Praça Saldanha, no Picoas, sei que estou morando agora na Estefânia, perto do Largo, e que pego a Casal Ribeiro para chegar na Cinco de Outubro e seguir reto até a Igreja, mas ainda não sei o nome da Igreja, mas que fica do lado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL que me importa.

Alguns dizem que é andando que se conhece o que se anda. "Eu preciso andar, um caminho só, vou buscar alguém, que eu nem sei quem sou", mas isso não descubro tanto andando, mas sim encontrando e me vendo como me vêem. Espelhos ou pessoas pra me definirem. Para para conhecer o que se anda, mais que andar, é procurar quarto para morar em anúncio de jornal. Quarto partilhado com TV em Benfica, que fica longe daqui, quarto individual barato em Odivelas, que mal aparece no mapa de tão longe, e nem vou falar do quarto confortável e fresco que fica no centro, que dizem até que é perigoso.

Estou descobrindo aliás que Lisboa é a terra do marco zero do conhecimento de qualquer coisa. Eu pelo menos, que sou eu e que eu sou tudo menos Lisboa, vou andando e olhando e a cada olhar nasce uma nova constatação. E acho que era isso que eu queria dizer, sim, que Lisboa é a terra onde nascem as constatações, e crescem desde pequenas com seus olhares mal feitos de preconceitos de não saber como e pra onde olhar porque já olham errado e depois tem que fechar os olhos para não saber o que não se devia. E aí fico nessa de buscar o português comum, o incomum, tento me supreender com o que devia e achar normal o que se acha, descobrir palavras mágicas que puxam botões de ligar e desligar a humanidade das pessoas, ver que entre "faz-favor" e a crueza de um "oi, você sabe me dizer" separa um português simpático de uma virada de olhos que assassina sua existência por quase três ou quatro segundos.

Por enquanto, continuo a olhar para prédios com olhos de surpresa enquanto eles ainda me surpreenderem, a passar de praça em praça vendo monumentos sem nome até que tenham nome e se transformem em pedaços de pedra com nome também conhecidos como referência para se chegar no meu endereço, passando pelo prédio da telefônica e pela estátua do José Fontana, e a me livrar dos gerúndios, que é a primeira coisa que fiz quando cheguei, já que gerúndios não passam pela alfândega em Portugal. Espero comprar novos quando voltar.

E que espero conhecer pessoas que durem mais do que quinze minutos, já que a existência de turistas e de esbarrões nas ruas parece evaporar em contato com o daqui a pouco, ou com aviões que tem que decolar, ou com a próxima esquina onde tenho que ir por aqui mas você segue em frente até a hora de virar a esquerda. Porque ficar nesse ver e não ver mais quem eu sou de quinze em quinze minutos já vai perder a graça e quero ver se duro pelo menos seis meses antes de deixar de ser qualquer coisa de novo.

Volto a escrever quando me encontrar. Talvez, já sem gerúndio nenhum, mas com muitos infinitivos.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Escritos para um dia de vôo

Vou escrever isso em menos tempo do que me cabe. Ou do que cabe para o momento. Mas é isso que os momentos costumam fazer, fazem coisas serem escritas assim na pressa, sem que tenham tempo aonde caibam.

Queria ter ido na despedida de vocês, eu sei, não deu, e na verdade minha vida tem sido ultimamente pouco mais que uma seqüência interminável de despedidas, como se os abraços, beijos, os me-escreva ou me-liga, os espera-que-eu-não-quero-chorar e os droga-já-estou-chorando nunca me fossem suficientes. Não que tenha sido essa a razão por eu não ter ido nas últimas despedidas, sei que não fui porque não deu.

Mas também não deu pra despedir de ninguém. Parece que nenhum até-logo é longo o suficiente para durar seis meses, e que os adeus são muito pouco curtos para não serem para tempo demais. Não consegui achar meio termo, um adeus-breve, ou já-volto-muito-tarde. Falta palavra e isso é chato.

De vocês na verdade não me despeço. É estranho, vocês são meio que um mundo paralelo meu, onde enquanto tudo ficava para trás com minhas seqüëncias de até-breves e tchaus, com vocês eu só dizia oi e olás e como-vais e até-daqui-a-poucos. Vocês são aquilo que fica, e é bom que algo fique, e que sejam vocês, essa coisa meio you-say-goodbye-and-i-say-hello a la beatles.

E a questão agora é pensar naquilo que fica, que é o que não vai. Estou com a mala aberta aqui na minha frente e a questão é a pequenitude das malas, que alguém fez pequenas demais para não serem levadas a sério. São só levadas, com o sério dentro, e depois dele pouca coisa cabe. Cabe umas roupas, uma camisa azul que é meio nova sim mas a outra rasgada que estava pensando em costurar vai acabar ficando por aqui mesmo. E é estranho olhar para essas coisas desistidas. Quando o armário, as estantes, e todos esses depósitos de resíduos da eternidade de nós mesmos ficam ainda. Com tanto. E nós levando tão pouco. O livro que vem, e o deveria vir mas lembrei que não é meu e tenho que devolver, porque sim, tem coisas que não podem esperar que a gente volte. O livro já foi, e outras coisas também vão. De tudo fica um pouco, mas um pouco também vai, e é porque tem que ir.

Então entre o que fica e o que vai, o que eu mando são meus exageros e meus dramas que não pensem que não são também de ansiedade e de olhos fitando o horizonte desesperadamente de minuto a minuto sabendo que a qualquer instante eu vou parar de reconhecê-lo e ele vai ser aquela linha tão horizontal como sempre foi, mas absurdamente diferente. E que isso vai ser fantástico. E que vou me apaixonar pelos nomes de cada rua de cada esquina e bairro onde estarei completamente perdido até o dia em que vou saber das estradas que se cruzam e das mãos que tem contra-mãos, e que ali é o Tejo e não do outro lado como eu achava que era. E que quando eu for voltar, o que vai ficar é o lá que ainda nem veio.

Mas tinha que escrever, e tinha que ser desse jeito, porque acho que só assim eu vou sentir que algo está acontecendo. Porque até acontecer, estarei meio que anestesiado demais para perceber que o que está por vir é qualquer coisa de diferente do que é uma segunda-feira ou uma terça, e que o amanhã não cabe no vocabulário dos dias-da-semana.

"The only baggage you can bring is all that you can't leave behind". U2 (ok, ok, antropólogos não costumam citar U2, mas aqui não teve jeito. vou ver se cito o malinowski da próxima vez...)

Abraço
...e até daqui a pouco: Rhaul, Lucas, Mara, Isabela (que já está lá), Nadja (que também), Thiago e Dani (que vão comigo), Deivison (futuro vizinho), Gabriela, e outros tantos que por ora só conheço por etcetra.

Rafael (Lasevitz)

(meu vôo parte de Brasília para Lisboa pela TAP nesta segunda, dia 10, às 17h55).

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Coisas que ocorrem entre o sono, uma calça rasgada e uma carta

Acordei hoje por volta de sete horas da manhã e não fosse a orquestra de um celular estranhamente disposto ao meu lado na cama que resolvesse praticar sua própria sincronia naquele exato instante, eu provavelmente não teria acordado e, nesse caso, teria que escrever este parágrafo de outra forma, o que seria um problema dado o tempo que me come. Ia dizer corrói, mas come soa mais dramático.

Foi daquelas manhãs em que a água do banho quente entrava em paradoxo com o frio e eu já não sabia se não conseguia pensar porque minhas idéias tinham congelado ou derretido. Acho que dormi quatro horas hoje. Diria cinco, mas o impacto é de quatro, principalmente considerando que perdi uma dessas horas sonhando que andava pelas ruas com uma calça rasgada no joelho. Acho que não ando por aí com calças rasgadas no joelho desde os tempos do primário, quando tinha o hábito de arrastar meu joelho com calças ainda-não-rasgadas pelo chão. Foi interessante constatar que não faço mais isso hoje em dia.

Não me lembro de ter posto roupas no caminho do banho para o carro, mas devo ter posto. Vim para a universidade ouvindo histórias sobre qualquer coisa do trabalho do meu pai mas que perdia em alguns momentos a minha atenção para idéias aleatórias da minha cabeça. Me dou conta agora que não me lembro nem de uma coisa nem de outra e na verdade devo dizer que confio no meu esquecimento, o que é um problema sério já que às vezes eu esqueço das coisas.

Dormi na minha sala da universidade. Ou ao menos tentei já que meu corpo pareceu pouco confortável e parecia se recusar a agradar a rede em que se deitava, tanto que se balançava, ficava rígida em lugares estranhos e chegou a ameaçar me derrubar ao chão. Acho que já soube dormir um dia, mas faz tempo e de tanto ficar acordado, devo ter esquecido e, se dormi, foi num desses lances de sorte em que o olho se esquece de abrir e quando abre vê que passou tempo demais para se dizer que se estava acordado.

Não vale a pena falar que me acordei com frio, liguei o computador e vi, por email, que havia me enganado e que na realidade a reunião que eu pensava que começaria às 15h com os bolsistas e o núcleo de intercâmbio da universidade na realidade havia acontecido pela manhã, provavelmente um pouco antes de eu conseguir dormir, ou talvez, enquanto minhas calças se rasgavam no joelho (neste momento, começo a pensar que o sonho das calças rasgadas pode ter acontecido quando dormia na rede, e não em casa).

Ainda desconfio de uma certa irracionalidade no desespero que veio logo após este email, de modo que não falarei dela enquanto não tiver sido julgada apropriadamente. Andei debaixo do sol, almocei debaixo da sombra e às duas e trinta da tarde eu estava lá, eclipsado pelo teto sempre estranho da reitoria e pensando nas palavras que já tinham sido ditas de manhã na tal reunião e que eu repetiria porque afinal a humanidade é uma máquina de redundâncias e isso nunca havia me incomodado mais do que a obsessão por ser original, então eu provavelmente trocaria uma vírgula aqui e outra um pouco mais pra frente, no fim da terceira frase, para reclamar das mesmas coisas e ouvir as mesmas respostas, com a diferença de serem meus ouvidos e as bocas deles com lábios rachados pelo sol de depois do almoço. Queria terminar a formatação das minhas palavras possíveis mas fui interrompido no meio de um negrito ou um itálico, não lembro bem, por uma moça que me acenava de longe e me dizia que a minha carta tinha chegado.

A minha carta de aceite tinha chegado. De Lisboa. De avião. Hoje. Agora há pouco.

Devo ter balbuciado alguma palavra berrada de comemoração e apagado as redundâncias originais de qualquer negrito imaginado ingenuamente antes de sair de lá com a carta em mãos, soltando alguma frase a mais meio rachada de sol e que por isso pode não ter sido ouvida ou se foi, misturou-se com qualquer outra idéia e agora já estão tão emaranhadas que vai ser difícil soltar.

Amanhã, passarei cinco horas lendo revistas portuguesas antigas na embaixada.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Portugal antes da hora

E a fase em que os intercambistas desconhecidos continuam se conhecendo continua. Dez pessoas em uma mesa de bar, lutando para extrair pedaços da vida do outro. Seria um reality show, se eu já não tivesse todos os direitos reservados nesse blog, claro. Aliás, eu geralmente uso bisturis pra esse tipo de coisa, mas ontem acabei esquecendo o meu em casa, então teve que ser na mão mesmo.

O estranho é que, de umas semanas para cá, tenho tido esses relâmpagos de momentos em que eu já me sinto viajando. Verdade, viajar não é um ato, está mais mesmo para uma condição mental. Quando você sente que o desconhecido te ronda, de alguma forma. Portugal para mim é isso, o desconhecido absoluto que vou desbravando, com facões a tirar mato da minha frente e com pé descalço desses que pisam em grama e se sujam de barro que vou ter de limpar depois na própria grama. Por enquanto, estou arrancando os galhos e o mato da minha frente em mesas de buteco cheias de intercambistas. Meu Portugal, por enquanto, é feito de pessoas e de palavras.

...

Enquanto isso, o visto não sai porque ainda não tenho carta de aceite original da UNL. Dizem os boatos que, para ser aceito, tenho que passar por rituais de passagem que parecem envolver três bacalhaus com uma cara parecida com a do Cristiano Ronaldo, uma tábua de madeira do assoalho do sótão de uma caravela portuguesa, um CD de fado composto por um músico do Nepal (junto com um pedaço da orelha do seu cachorro), claro, fotocópias autenticadas de tudo isso.

(aliás, sim, esse blog pode saltar de momentos poéticos para momentos irônicos ou sem graça sem avisos prévios. não nos responsabilizamos pelas oscilações de humor do nosso blog. assim como os funcionários da embaixada de portugal...)