quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Com ou sem destinatário. Dilemas de um náufrago.

Então, não sei se isso é um email ou é um conto. Talvez seja email, mas emails são espalhadores de novidades, como se aspirassem do ar esses instantes que pairam por aí, distraídos, meramente acontecendo ou acontecidos, e depois se soprassem nos ouvidos e olhos alheios, todos de uma vez. Como um espirro, mas com uma imagem metafórica mais higiênica que um espirro.

Mas aí então se isso for um email, ou espirro, corro o risco - ou ando o risco, posto que não pretendo apressá-lo - de te deixar em estado de grande frustração, dessas de pessoas que abrem lata de feijão enlatado e recebem giz de cera que nem cozido direito foi. Digo isso porque não pretendo dizer nada de novo. Não porque o novo não tenha acontecido, ou que eu não tenha visto um novo a minha esquerda agora a pouco, do lado de outro não tão novo assim. De fato, tem um novo agora mesmo no teto, junto com outro bem velho. Tenho pilhas de novo guardadas em uma caixa de sapatos debaixo da cama e semana que vem ou na outra ainda pego um aspirador pra tirar a poeira de tudo aquilo que é novo.

Não. O problema é que é novo demais para ser jogado assim, como balde de tinta no papel, tudo de uma vez, como que saturando o velho com tudo o que ele não é, ou nele não se vê, ou que por ele não passou e que ficou entre a rua da casa verde cruzando com o senhor sentado no banco não tão verde da praça na hora em que a árvore não fazia sombra em cima dele e por isso o chapéu. E então não dá pra dizer que o homem da imigração fez cara feia por cinco minutos antes de me deixar passar, ou que o rapaz sentado do nosso lado no mirante de Granada era brasileiro o tempo todo e se a conversa não tivesse deixado uma brecha ele não teria sido brasileiro, ou que a rua que no livro do Joyce era rua de escritórios de advocacia trombou com bem uns cem anos e caiu no chão com cara de rua de pubs de música irlandesa tradicional, dessas que se inventam para os turistas que nem cair bêbados no chão eles caem direito. Não dá pra falar de whisky, the jar, Molly Malone ou dirty old town porque já seriam explicações conceituais e isso já extrapolaria a dúvida inicial entre email e conto porque já seria digressão teórica, e entre baldes de tinta e um faire-comme-si de desenhar o mundo, ao menos a aleatoriedade dos baldes é honesta em relação a sua própria falta de vontade de deixar de ser balde, e tinta, e parede (ou papel, não me lembro mais se a analogia antes era com parede ou papel. Enfim).

Então seria um conto. Mas conto também não pode ser se você me pediu muito claramente um email daqueles que só eu sei escrever e eu não posso voltar de mãos vazias, ou com a mão errada, ou uma nas costas e a outra atrás, ou as duas mãos na frente, ou com uma no teclado e a outra gesticulando coisas incompreensíveis para quem não está ouvindo o que toca no meu fone de ouvido, muitas vezes aliás sem fone e que nem precisa de ouvido e que agora é Legião e é estranho ouvir Faroeste Caboclo como se fosse música de elevador em Lisboa. E de qualquer forma não é conto porque não conto contos em emails, e isso, se deixarmos toda a divagação metafísica e transgressões poéticas de lado, é sim um email, tanto que quanto mais eu escrevo, mais essa barrinha vertical piscante se move para longe da palavra, como que fugindo, ou como que se transformando em letra, e outra letra, e mais uma, mas sendo sempre a mesma barrinha, jamais escrita de fato, jamais ela própria.

Ser tudo menos si próprio. Bom, nunca acreditei muito nessa coisa de um eu que fosse mais eu que os outros, que os outros eus tem menos quantidade de eu que eu mesmo, porque enquanto aqueles eu comprei parcelado, chegou atrasado via correio e já está cheio de pó porque alguém esqueceu de regar ou não podia lavar com água quente, o outro veio embrulhado de aniversário que abri no natal e é de tradição de família, foi usado pelo bisavô na guerra e deu sorte pro tio que usou de amuleto enquanto eu perdia no jogo de amarelinha. Mas a verdade é que nesses trancos, barrancos e ladeiras européias, já deixei muitos eus por aí. Aliás, não sei se você me reconhece enquanto escrevo. Aliás, não sei se escrevo para ver se eu mesmo me reconheço, já que escrever é mesmo como espelho que eu mesmo pinto do meu próprio reflexo escrito. Não sei, podemos ver, quem reconhecer o outro primeiro ganha. Aliás, nem repara, fiz a barba esses dias, mas foi na tesoura mesmo e acho que ficou meio estranho embaixo. Juro que também não reparo que você começou o email com "oi" quando deveria começar com "então", ou nem começar que o meio e o fim é sempre o que temos de mais íntimo.

Então o que eu te mando é um grande indefinido. Para você subverter como quiser. E mandar de volta moldado, remontado e embalado pra viagem.

Se eu terminar com beijos e saudades, vira email. E se tiver pontos de exclamação fica pouco literário.

R., abreviado, que você completa depois. Ou lê nas entrelinhas.