quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Oito bicicletas roubadas

Foi assim, no meio da conversa mesmo e que eu nem me lembro em que ponto estava até porque tenho o mau hábito de esquecer as coisas interrompidas. Estávamos os três num desses bancos de praça em Aveiro e não tem porque dizer que ele era branco ou que tinha cara de banco de praça para dizer que fomos interrompidos por esse senhor de idade que já estava sentado lá antes de nós e olha que a gente já devia estar por ali há bem meia hora. Não sei se olhamos para ele antes de ele começar a falar, acho que não, foi assim do nada mesmo que Senhores, aqui em Portugal pede-se licença antes de se sentar, pede-se licença antes de se levantar, e portanto eu vos digo. Licença. E acho que teve até exclamação no final, mas devo dizer que ainda não estou suficientemente adaptado ao sotaque português para interpretar a subjetividade de suas intonações de voz.

Tem mesmo umas palavras que servem de anestesia, licença, faz favor, importa-se, desculpa lá, mas o fato é que somos estorvos. Pedaços perambulantes de desordem. E então fomos em oito de uma vez perambular de bicicleta, que em Aveiro se diz buga e se aluga de graça na praça central da cidade. Ou não era central, não sei, acho que era, eu pelo menos não faria um negócio de aluguel de bugas na periferia do Aveiro. E então quando percebemos tínhamos quinze minutos para andar de buga e aí não sei, foi pouco, buga não se pedala, se contempla, e de qualquer forma o Rhaul disse que aqui é assim mesmo, a gente pega as bugas e só devolve na semana seguinte, mas Rhaul, tem certeza, tenho, faço isso direto, mas Rhaul, são oito, problema não, buga, sim, buga. Então tá.

No meio do caminho uma senhora de idade que passava pela calçada do outro lado da rua pensava que provavelmente precisaria de mais ovos para o pequeno almoço do amanhã daquele dia e teria mesmo se lembrado ainda que o leite tinha acabado se a linha de raciocínio mais ou menos circular e viciosa que nos atinge no final da vida não tivesse sido brutalmente interrompida por seu próprio grito, ei, vocês não sabem que isso é proibido, não respondi e já imaginei o escândalo, denúncias de bugas roubadas, brasileiros deportados de Portugal, quebra de relações diplomáticas, e ela continuou, ora pois, não percebem que estão na contra-mão, é proibido, e de novo, creio que ouvi um ponto de exclamação. Sim, acho que era. Provavelmente, ainda mais agora, repetindo o evento na minha cabeça.

Como não trancamos as bugas com os cadeados que esquecemos de pegar, Rhaul, cadê os cadeados, putz, esqueci de pedir, pois é, então colocamos as oito dentro do corredor de entrada do prédio do Rhaul. Apesar de estreito, ainda restou espaço suficiente para o trânsito de moradores e a cena das bugas estacionadas dentro do prédio foi tão boa que tiramos bem umas quatro ou cinco fotos, uma com todo o pessoal, depois Lucas fez um rosto estranho na frente, depois saiu tremida demais com o flash e depois o senhor que morava no quarto andar e tinha uns setenta anos de idade começou a gritar que o corredor do prédio não era pista de corridas. O processo de elocubração desta frase no cérebro deste senhor deve ter sido interessante, pois eis que ele acessa uma parte do cérebro responsável por deslocamentos semânticos geradores de sentimentos cômicos e, no instante seguinte, narra estes sentimentos cômicos com um olhar de incômodo ou raiva que é algo maior que incômodo. E pensei que talvez se pedissemos licença estaria tudo bem, mas acho que não pedi e só ouvi o Rhaul, senhor, nós queríamos devolver as bugas mas não tivemos tempo, podemos tirar as bugas daqui agora mesmo, mas eu moro aqui há quarenta anos e nunca vi nada assim, e esse barulho todo que vocês fazem, mas senhor, desculpe, foi um erro mas vamos retirar as bugas agora, tudo bem, vocês podem devolver as bugas amanhã, mas eu moro aqui há quarenta anos e não façam barulho, ok senhor, desculpe, obrigado, eu moro aqui há quarenta anos, até mais, quarenta. E nesse último acho que foi sem exclamação, mas não saberia dizer já que havia subido os cinco andares de escada já há alguns minutos naquela hora.

Eu e mais três dormimos fora e fomos ao Rhaul de manhã não tão cedo e provavelmente rimos levemente ao vermos as oito bugas ainda lá, e vimos os degraus a nossa frente, cinco andares, e veio uma voz ao longe, a polícia, ahn, a polícia e essas bugas, hein, e era uma senhora de idade do quarto andar, esposa do senhor do ontem daquele dia, e é um absurdo, essas bugas aqui dentro do prédio, isso é proibido, subindo escadas, eu já chamei a polícia, subindo escadas, e ainda ficam fazendo barulho a noite toda, bom dia dona, eu já chamei a polícia. E eu pensei de novo em pedir licença, mas resolvi que usaria desculpas mesmo, que foi o que o Rhaul tinha usado no dia anterior. Tentei puxar na cabeça as frases exatas do Rhaul, algo como desculpa lá senhor, é que não deu tempo de devolver as bugas mas vamos tirá-las daqui assim que possível, então repeti com pequenas adaptações, desculpa lá dona, é que não deu tempo de, desculpa nada que eu já chamei a polícia. E aqui eu sei que teve exclamação. Subi as escadas.

Algumas coisas não se sabe. Não se sabe bem quanto barulho foi que o casal do quarto andar, que mal conseguia ouvir nossos vastos e variados pedidos de desculpas, ouviu na noite anterior tantos ruídos em um apartamento que esteve vazio na maior parte da noite e aliás, acho que as escadas do prédio são daquelas que não fazem nhéc-nhéc transformando cada pé em degrau em uma torrencial redundância nhéquica. Também não se sabe se nhéquica existe. Não se sabe ainda como tiramos o Rhaul tão rápido do chuveiro, bom, talvez batendo insanamente na porta do banheiro, Rhaul, Rhaul, a polícia, sai daí, Rhaul.

Essa cena acho que vale ser contada da perspectiva do Rhaul, que entrou no banho e deve ter retomado alguns cálculos em sua mente, sim, posso tomar banho agora, esperar mais dois tomarem banho, depois praia, antes devolver as bugas, antes o almoço, sobrou de ontem, molha uma perna no chuveiro, lê o bilhete na porta que a francesa deixou e que diz porta, e na banheira dizendo banheira, e no espelho, espelho, espelho retrovisor, retroviseur, molha a outra perna, Rhaul, a polícia, quê, a polícia, a velha, as bugas, sai daí, desliga a água, seca uma perna, seca a outra perna, vai secar o cabelo e as costas mas não precisa.

Oito pessoas desceram cinco andares de escadas muito rapidamente e acho que o Lucas ainda olhou para os lados para ver se a polícia não estava na direita, ou na esquerda, talvez na nossa frente, estranho, Aveiro é pequena, a polícia não deve ficar longe, mas logo oito bugas estavam nas ruas novamente.

Voltamos a pé.

Se a polícia veio, não estava mais lá. Talvez tenha passado por lá um policial, já nos seus quarenta anos, talvez tenha até vindo de buga, uma de ontem que não deu pra devolver, e ouviu a história, mas minha senhora, não há cá nenhuma buga, mas como, eu vi, eram oito, estavam bem aqui, mas minha senhora, a senhora tem estado a dormir bem ultimamente, sim, tenho dormido bem, e o seu marido, está bem, sim, ele mora cá há quarenta anos. Sei que subimos os cinco andares de escadas com o maior silêncio que oito pessoas podem fazer quando sobem escadas que não fazem nhéc-nhéc. E acho que já estávamos no meio do caminho entre o quarto e o quinto andar. Sim, no meio do caminho, entre o quarto e o quinto degrau, naquele momento em que nenhum dos pés está em degrau nenhum e que dura tão pouco que nem parece que nos livramos do chão por algumas frações de segundo. Ali, exatamente ali, quando a senhora do quarto andar abriu a porta. E abriu com exclamações. Muitas. Pá. Os degraus que faltavam foram feitos corridos, saltando de três em três, e aí deu pra sentir os pés fora do chão de vez em quando.

E acho que aí fizemos barulho. Desculpa lá.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Inventário

Começou com o garfo, a faca e a colher que com as mãos não dava ainda que na primeira noite a manteiga tenha entrado no pão na base do dedo e o suco bebido na garrafa. Veio também a xícara e eu subverto longas tradições de família todos os dias no suco que bebo de xícara e que minha boca ainda teima em esperar que venha quente como em qualquer coisa de xícara.

Essas eu comprei no chinês. Acho que quando não se sabe onde comprar, compra-se no chinês. E veio de lá a panela também, que chamei de tacho com orgulho de um lusófono já bem articulado às peculiaridades da língua local já no terceiro dia de Lisboa. Mas o vendedor era chinês e não sabia o que era tacho nem muito menos panela. Disse que não tinha e eu fui embora perguntando para uma portuguesa na rua, faz favor, você sabe onde se vendem tachos, sim, claro, aqui no chinês mesmo, mas me disse que não tem, mas tem, ora pois, se não comprei um aqui ontem mesmo?

A panela ou tacho de cinco euros veio com uma grade estranha que não sei para quê serve e acabou sendo maior do que a minha fome. Ou do que o meu arroz ou, enfim, das minhas duas xícaras de água que evaporaram antes e a panela tem uma mancha de queimado até hoje. Cicatriz gastronômica, quem sabe. A frigideira só foi vir alguns dias depois após um hambúrguer frustrado que quase não sobrevive à panela gigante que tentei travestir de frigideira. Nem conto o que tentei fazer com o feijão só de pensar nas palavras que não conheço que a história exige de mim para ser contada. O que conto é que a frigideira veio numa feira do Carnide com mais uma frigideira menor dentro. A maior eu uso como prato de vez em quando, quando os tupperwares, também do chinês, estão ocupados.

Pratos mesmo eu não comprei. Do mercado vieram logo esponja, detergente e papel higiênico que comprei aos montes e depois de um mês me dei conta de que só tinha usado uma vez que essas coisas eu preferia fazer no shopping perto de casa e um dia ainda desenvolvo essa narrativa melhor para transformá-la em alguma espécie de protesto simbólico contra o consumismo mas por ora vou usar o argumento de que era mais prático mesmo e que com o tempo fiz até algumas descobertas, percebi que a música do shopping se repetia todos os dias e sempre no mesmo horário. E comecei a achar que os seguranças olhavam para mim, entrando e saindo, todos os dias, sem comprar nada, às vezes parando em um sofá para ler Saramago que em casa não dava. Me imaginei sendo expulso do shopping, senhor, desculpe, você não pode vir ao shopping somente para usar a casa de banho, você precisa consumir algo, mas eu consumi, comprei um cartão telefônico na semana passada.

Sim, teve o cartão telefônico de cento e vinte minutos que foi embora em vinte depois de trezentas e setenta ligações para anúncios de jornal enquanto eu procurava quarto para alugar. Aliás, seriam cento e vinte se fossem ligações para o Brasil. Para celulares em Portugal, eram só vinte. Depois ainda veio outro cartão que comprei em Évora para ligar pra Bia pra saber onde que eu tava, sim, em Évora, mas praonde vou, Rua do Raimundo, ok, chego lá daqui a pouco, e cheguei depois de um pouco mais porque a Rua do Raimundo ficava do outro lado e não desse.

Então veio o celular que na verdade é telemóvel e que foi o mais barato e que desliga sozinho de vez em quando enquanto eu uso, talvez por greve ou rebeldia que pode sinalizar uma não distante revolução geral dos aparelhos contra os seres humanos. Uma tesoura eu comprei esses dias no chinês por causa da barba porque tesoura trazida na mala do avião era potencial arma terrorista, nunca se sabe. E sim, teve o caso do tênis que não foi nem que tenha aberto algum buraco na sola, é que ele rasgou mesmo. Sabe ali, onde nunca rasga. Pois é. Comprei outro numa C&A que sim, existe em Portugal. Alguns diz em uma loja, não lembro qual. Ele dói no pé esquerdo mas não no direito, o que pode ser uma inclinação política ou algum fator homeopático, não sei ainda. E alguns dizem que é igual ao anterior.

Desodorante ainda não precisei comprar. Os estudantes de intercâmbio recebem um. Dentro de um kit que vem com um manual da faculdade e uma bola de borracha, dessas antiestresse.

Talvez seja esse, afinal, o inventário real das coisas necessárias para um estudante brasileiro em Portugal. Depois de fazer e desfazer malas, trazer o que tinha que vir e deixar para trás aquilo que, de tudo o que nós somos e que guardamos na forma de tralha de nós mesmos, tinha que ficar. E que, de tudo e tanto que ficou, tinha duas coisas que tinham que ser repostas, sei lá, preciso de palavras grandes aqui então vou soltar um pedras refundantes da nossa existência. Aquilo que reiventa a nós mesmos no além-mar. Um desodorante e uma bola de borracha antiestresse, porque sem isso, ah, sem isso não dá.