quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Coisas que ocorrem entre o sono, uma calça rasgada e uma carta

Acordei hoje por volta de sete horas da manhã e não fosse a orquestra de um celular estranhamente disposto ao meu lado na cama que resolvesse praticar sua própria sincronia naquele exato instante, eu provavelmente não teria acordado e, nesse caso, teria que escrever este parágrafo de outra forma, o que seria um problema dado o tempo que me come. Ia dizer corrói, mas come soa mais dramático.

Foi daquelas manhãs em que a água do banho quente entrava em paradoxo com o frio e eu já não sabia se não conseguia pensar porque minhas idéias tinham congelado ou derretido. Acho que dormi quatro horas hoje. Diria cinco, mas o impacto é de quatro, principalmente considerando que perdi uma dessas horas sonhando que andava pelas ruas com uma calça rasgada no joelho. Acho que não ando por aí com calças rasgadas no joelho desde os tempos do primário, quando tinha o hábito de arrastar meu joelho com calças ainda-não-rasgadas pelo chão. Foi interessante constatar que não faço mais isso hoje em dia.

Não me lembro de ter posto roupas no caminho do banho para o carro, mas devo ter posto. Vim para a universidade ouvindo histórias sobre qualquer coisa do trabalho do meu pai mas que perdia em alguns momentos a minha atenção para idéias aleatórias da minha cabeça. Me dou conta agora que não me lembro nem de uma coisa nem de outra e na verdade devo dizer que confio no meu esquecimento, o que é um problema sério já que às vezes eu esqueço das coisas.

Dormi na minha sala da universidade. Ou ao menos tentei já que meu corpo pareceu pouco confortável e parecia se recusar a agradar a rede em que se deitava, tanto que se balançava, ficava rígida em lugares estranhos e chegou a ameaçar me derrubar ao chão. Acho que já soube dormir um dia, mas faz tempo e de tanto ficar acordado, devo ter esquecido e, se dormi, foi num desses lances de sorte em que o olho se esquece de abrir e quando abre vê que passou tempo demais para se dizer que se estava acordado.

Não vale a pena falar que me acordei com frio, liguei o computador e vi, por email, que havia me enganado e que na realidade a reunião que eu pensava que começaria às 15h com os bolsistas e o núcleo de intercâmbio da universidade na realidade havia acontecido pela manhã, provavelmente um pouco antes de eu conseguir dormir, ou talvez, enquanto minhas calças se rasgavam no joelho (neste momento, começo a pensar que o sonho das calças rasgadas pode ter acontecido quando dormia na rede, e não em casa).

Ainda desconfio de uma certa irracionalidade no desespero que veio logo após este email, de modo que não falarei dela enquanto não tiver sido julgada apropriadamente. Andei debaixo do sol, almocei debaixo da sombra e às duas e trinta da tarde eu estava lá, eclipsado pelo teto sempre estranho da reitoria e pensando nas palavras que já tinham sido ditas de manhã na tal reunião e que eu repetiria porque afinal a humanidade é uma máquina de redundâncias e isso nunca havia me incomodado mais do que a obsessão por ser original, então eu provavelmente trocaria uma vírgula aqui e outra um pouco mais pra frente, no fim da terceira frase, para reclamar das mesmas coisas e ouvir as mesmas respostas, com a diferença de serem meus ouvidos e as bocas deles com lábios rachados pelo sol de depois do almoço. Queria terminar a formatação das minhas palavras possíveis mas fui interrompido no meio de um negrito ou um itálico, não lembro bem, por uma moça que me acenava de longe e me dizia que a minha carta tinha chegado.

A minha carta de aceite tinha chegado. De Lisboa. De avião. Hoje. Agora há pouco.

Devo ter balbuciado alguma palavra berrada de comemoração e apagado as redundâncias originais de qualquer negrito imaginado ingenuamente antes de sair de lá com a carta em mãos, soltando alguma frase a mais meio rachada de sol e que por isso pode não ter sido ouvida ou se foi, misturou-se com qualquer outra idéia e agora já estão tão emaranhadas que vai ser difícil soltar.

Amanhã, passarei cinco horas lendo revistas portuguesas antigas na embaixada.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Portugal antes da hora

E a fase em que os intercambistas desconhecidos continuam se conhecendo continua. Dez pessoas em uma mesa de bar, lutando para extrair pedaços da vida do outro. Seria um reality show, se eu já não tivesse todos os direitos reservados nesse blog, claro. Aliás, eu geralmente uso bisturis pra esse tipo de coisa, mas ontem acabei esquecendo o meu em casa, então teve que ser na mão mesmo.

O estranho é que, de umas semanas para cá, tenho tido esses relâmpagos de momentos em que eu já me sinto viajando. Verdade, viajar não é um ato, está mais mesmo para uma condição mental. Quando você sente que o desconhecido te ronda, de alguma forma. Portugal para mim é isso, o desconhecido absoluto que vou desbravando, com facões a tirar mato da minha frente e com pé descalço desses que pisam em grama e se sujam de barro que vou ter de limpar depois na própria grama. Por enquanto, estou arrancando os galhos e o mato da minha frente em mesas de buteco cheias de intercambistas. Meu Portugal, por enquanto, é feito de pessoas e de palavras.

...

Enquanto isso, o visto não sai porque ainda não tenho carta de aceite original da UNL. Dizem os boatos que, para ser aceito, tenho que passar por rituais de passagem que parecem envolver três bacalhaus com uma cara parecida com a do Cristiano Ronaldo, uma tábua de madeira do assoalho do sótão de uma caravela portuguesa, um CD de fado composto por um músico do Nepal (junto com um pedaço da orelha do seu cachorro), claro, fotocópias autenticadas de tudo isso.

(aliás, sim, esse blog pode saltar de momentos poéticos para momentos irônicos ou sem graça sem avisos prévios. não nos responsabilizamos pelas oscilações de humor do nosso blog. assim como os funcionários da embaixada de portugal...)

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Fui na Embaixada hoje e...

... não tive muito boas notícias. Cheguei lá por volta de 8h45. Queria chegar 8h30, mas me perdi no caminho pra manter a tradição (nadja, esqueci a bússola em casa de novo. droga...). Pois bem, depois de passar pelo esquema de segurança interno (preparem-se para vidros escuros em que pessoas que você não vê pedem que você olhe para eles), esperei até as 9h com mais sete pessoas para que abrissem o portão. Enfim, fui o oitavo a chegar e ainda assim, só fui ser atendido meio-dia. Isso que eles estavam de bom-humor, porque já me avisaram que o humor dos funcionários da embaixada é um tanto flutuante.

Enfim, entrei lá, entreguei meus documentos e estava tudo rigorosamente certo. EXCETO a tal carta de aceite. O problema é que eles não aceitam cópias da carta, nem mesmo se for Fax, que é o que eu tinha. Isso, ao contrário do que o INT tinha me dito, que eles aceitariam se fosse fax. Falei com a Karina do INT hj a tarde sobre isso e ela ficou surpresa, e também preocupada, e ficou de falar com a Perla amanhã para ver se ligam para as Universidades pressionando.

De resto, nas três horas de espera, conheci uns brasileiros que moraram em Portugal. Ou seja, já sou expert em palavras portuguesas estranhas. Mas isso fica pro Pôr-do-sol, quinta-feira.

(escrevi isso em um email do grupo de intercambistas, ou intercambiáveis, ainda não sei. achei que valia publicar aqui. quando falei que este blog era um diário de viagens, conta também o turismo burocrático. não é a toa que quero ir a Praga. acho que vou mudar o nome do blog para "O Processo". ah, é tanto mar...)

Tanto mar

A idéia é mesmo essa, de arremessar palavras de um oceano a outro de vez em quando, ainda que nesse mundo meio virtual, meio real tanto que até esbarra na gente vez ou outra, as palavras no fundo não saiam do lugar.

Mas não sei se vou ter paciência para escrever com paciência o tempo todo. Já aviso que de vez em quando vai sair na base do papel rasgado do caderno, com margens picotadas e sem dois dedos marcando o parágrafo. Às vezes, acho que nem um dedo só!

Sim, sempre falo do mito fundador dos meus blogs. Aqui, é porque vou ficar cinco meses em Lisboa estudando, o que nunca é realmente cinco meses nem realmente Lisboa, já que sou de me bifurcar muito por aí (droga, roubei essa do Cortázar. Antes fosse minha...). Devo sair por aí no meio do caminho e se acontecer de eu escrever aqui sobre Praga ou Dublin, paciência.

E o Velho Cravo é do Chico mesmo, o Buarque. Era pro blog se chamar "Tanto Mar", por causa da música sobre a Revolução dos Cravos em Portugal, mas parece que alguém criou um blog com esse nome antes. Blog bom aliás, desses silenciosos, tão cochichados que não tem nada pra ler.

Bom, nada como começar um blog com propriedade intelectual alheia. Vai a letra da música mito fundador do Chico:

Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim