quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Picotando pedaços de pessoas

O problema de se ficar sem escrever é ir acumulando coisas a serem escritas e que claro que não acumulo nada na memória ou já teria transbordado a dias e alagado Lisboa com histórias não ou mal contadas. E mal contadas é pior, porque são essas as que ficam zunindo depois nas nossas cabeças, passam por cima das outras poque querem ser contadas de novo, se transformam em obssessão porque é só com elas que nossos cérebros se ocupam já que a vergonha da história contada de forma travada e gaguejada e torta e abreviada e recortada e picotada onde não devia, essa vergonha não dá pra aguentar. E vira obsessão mesmo e na memória realmente não dá pra guardar nada que não seja obsessivo. Aliás, começo realmente a acreditar que memória e obsessão não são muito mais do que sinônimos e se escrevo isto agora de memória é porque estou obcecado.

Com o que não me obceco eu esqueço, então largo por aí no mundo pichado em cadernos, anotado em muros, rabiscado no papel do meu bolso que de tanto se encontrar e se perder nos alçapões obscuros das minhas calças parece que já pouco nele se encontra e muito mais se perde. E de qualquer forma, já é tanto anotado por aí que entre procurar por tudo e me dar conta de que serei forçado pelas circunstâncias a escrever um livro, prefiro o conforto do meu esquecimento que me faz escrever pouco. Um blog, no máximo.

E por isso agora parece que não sei o que escrevo. Me faltam obssessões talvez. O que não é muito diferente de não se lembrar de nada. Verdade que as aulas começaram, apesar de saber que isso vai necessariamente entrar em contradição com a minha próxima frase que dirá que não, que as aulas ainda não começaram, e que começaram as esperas frustradas por aulas que não começam já que aparentemente alunos e cadeiras e mesas e papéis e canetas não começam aulas. Professores começam aulas. Ou não e aí fica pra depois, e fica pra mim disparar em estudantes incautos tentativas mal pensadas e impulsivas de fabricação instantânea de amigos baseado em tudo aquilo o que nos une e então, parece que não vai ter aula hoje, pois é, acho que não, você soube de alguma coisa, não, mas já é a segunda que eu não tenho nessa semana, parece Brasil, pois é, é tudo igual, e você vem de fora também, sim, venho da França, ah, moi je parle um peu de Français aussi, eh oui, donc frase ininteligível, hm, mas se você puder falar mais devagar, ah, claro, bien sûr. A húngara com quem troquei três ou quatro palavras no primeiro dia continua me dando oi e tchau nas três vezes mais que nos encontramos mas sem novo acúmulo de palavras com as quais eu possa fazer alguma coisa, sei lá, cinco palavras já dá pra moldar um princípio de personalidade e aí eu já imagino o resto e faço qualquer coisa com ele. Me imagino discutindo o livro do Chico Buarque com o resto, falo que parte da história se passa em Budapeste, sim, que coincidência, e não é que tenho o livro aqui comigo na mochila agora mesmo, ah, verdade, posso ver, claro, quer que eu leia para você, posso traduzir alguns dos trechos. Ou brigo com esse resto porque ele não tem nada a ver comigo, e me prendo à outra que era francesa e pra quem fiquei olhando ontem por bem uns três ou quatro segundos sem ter certeza se era ela, e na verdade já sabia que não, que não era ela, quando descobri que era porque ela me disse oi e eu respondi com um oi que fingia surpresa, mas como ela é francesa deve ter pensado que é algum tique da cultura brasileira da qual ela ainda pouco conhece, quem sabe.

E assim vamos inventando qualquer razão para falar com qualquer pessoa, e a falta de lugar na sala de computadores pode ser mote para uma profunda amizade de quarenta e sete minutos, e a outra que me parou para perguntar se eu sabia se ia ter aula de antropologia do espaço teve que me aguentar falando por quinze minutos sobre os formatos das aulas nas universidades brasileiras e o quarto que posso conseguir ou não na Martim Moniz que é um bairro com grandes tensões sociais e étnicas não é, sim, verdade, mas não chega ser tão perigoso se você não provocar até porque de madrugada eles já estão bêbados, claro, bêbados, não provoco. E eu nem fazia a tal cadeira de antropologia do espaço.

Sei que nisso são quinze, vinte, cento e oitenta e sete pessoas com quem vou trombando e construindo cento e oitenta e sete novas possibilidades de eu. Como um reinício constante de mim mesmo, reinventado em cada esbarrão. E fico aqui sem saber quanto de mim realmente saiu naqueles trinta segundos ou meia hora e meia, já que o eu, que eu saiba, pra ficar pronto precisa ficar de molho por horas e horas e até dias e meses. Mas não, que quem eu vou conhecendo anda virando a francesa que estuda literatura portuguesa e que tem nome que fica feio em português, a austríaca que morou na Bahia e fala português bem e que estuda linguística mas parece saber um pouco também de antropologia e pena que não estudei linguística para poder levar a conversa mais adiante, e da portuguesa que acha importante que se misture teatro com antropologia e que eu acho que sim pois que temos que encenar muito para parecermos com qualquer outra pessoa que não somos quando saímos para conhecer o mundo dos outros, que é o que o antropólogo faz. Teatro.

E ela riu. E ainda conversamos um pouco mais até que sua aula começou, com o atraso de sempre desses professores portugueses, sim, é verdade, sempre atrasam, e que então agora ela se despede de mim levantando a mão já a alguns metros de distância com um aceno que dura um segundo, talvez um segundo e meio, e sabe-se lá se nos veremos de novo. Aliás, será que consigo refazer o rosto dela na minha mente? Tenho que conseguir, falei com ela há dez segundos. Mas não, parece que não, fica meio borrado. Depois tento me lembrar de novo.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Entrando com um tanque em Évora

Vim para Évora porque já estava ficando difícil aguentar a cama do meio das conversas sem sentido e de argumentações falhas da casa da dona Manuela, e porque a novela da TV da cama da esquerda tinha mais controle do que deveria sobre meus ouvidos e também porque sei lá, tinha que ir para qualquer lugar algum e Évora fez sentido por dois segundos ou três e no que vi já tinha o Tejo debaixo de mim.

E vim como que em uma invasão e sinto que até agora sou como que um tanque de guerra contra Évora indefesa. Pois que quando cheguei por aqui no domingo de tarde quase noite Évora era cidade de prédios velhos demais, com ruas estreitas demais para que se passasse sem que se tapasse o resto de sol de quem vem e que só não era mais estreito e apertado que o silêncio que esse sim esmagava qualquer passante com sua falta de qualquer coisa de barulho que deve ser patrimônio histórico ou coisa qualquer que o valha. E eu entrei com aquelas malas de carrinho de mão, atormentando os paralelepípedos da cidade e ali não é que eu fui barulhento, mas é que nisso de perder e recuperar dia após dia aquilo que sou, e que já fui perdido, turista, brasileiro, estudante, entediado e dormindo, ali eu era barulho. E só barulho, que as pessoas olhavam pela janela curiosas e voltavam os olhos de volta para qualquer coisa que faziam que produzia aquele silêncio artesanal que eu quebrava. A cada paralelepípedo.

E invadi casas de pessoas que agora me hospedam, e quartos de quem queria privacidade, e deitei com meu tanque no sofá do lado da cama de uma amiga e com os lençóis do outro que me emprestou e tendo a mim mesmo de travesseiro. E meu tanque se virou na cama durante a noite, e acordava a vizinhança a cada centímetro de sofá percorrido, tanto que eu mesmo com ele só acordamos depois de todo mundo.

E agora, abandonados que fomos pelos que acordam cedo demais, estamos livres para passar por cima de Évora e começar o processo de demolição.

A não ser que tenha algo melhor pra fazer. Parece que tem um filme do Scorcese de graça às 22h. Com sorte, encontrarei seres vivos por lá.

sábado, 15 de setembro de 2007

Cama do meio na casa de Dona Manuela

Não sabia o que era que me incomodava nos primeiros momentos de habitante da cama do meio do quarto da esquerda depois da porta de entrada do apartamento da dona Manuela e que tem um cômodo estranho, um cubo, eu diria, desses de madeira, antes da porta e que já quebrou meu joelho duas ou três vezes.

Pensei que era isso de não saber onde as coisas estão ou onde ficam. Porque de tudo o que não ficou em Brasília, de todas as Brasílias e Brasis que eu não troxe na mala ainda que sem saber bem porquê, aquilo pouco que veio tinha que sair e agora queria ter lugar. E se enfiaram em armários, armários de baixo, armários de cima. Sim, porque aquilo não tem outro nome, são armários, armários e também armários. E o que veio já não sabia mais onde estava, e eu não sabia mais onde que eu tinha me colocado, e isso foi estranho e quis ir embora no dia seguinte por algumas horas.

E talvez também porque tinha dois caras dos meus dois lados pois que a minha era a cama do meio e achava que não iria conseguir falar e não-falar com duas pessoas ao mesmo tempo. Dessas que trabalham e que não entendem piadas de estudantes de vinte anos e riem das minhas ironias depois de longas pausas em que ainda não sei se posso ser agredido nos próximos instantes, e sei que vou ser quando minha ironia sair meio torta demais para cariocas que moram a vinte anos em Portugal ou para portugueses do Alentejo que não suportam que os outros façam com que ele repita o que ele disse mais do que meia vez. Não o culpo, os diálogos são grandes fábricas de redundância.

Mas como podem ver, já os conheço quase como se fosse ontem, e tanto que já sei de um que quase já matou outros, que era militar e que queria atirar no Figueiredo quando o avião dele subia, e de outro que trabalha aqui e mais pra lá também daqui um dia qualquer desses e que é dono da verdade, pois que a comprou um dia desses ou levou quando ninguém estava olhando. Aliás, os dois são. Eu só concordo. Ou digo que talvez. É fácil ser respeitado. Tão fácil que é só dizer que sim ou que talvez, quem sabe, é até viável, e quem se importa com meus nãos internos. Servem de nada mesmo.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Eu, em algumas ruas de Lisboa

Pois bem, parece que o lá já se transformou em cá e que, se ainda não se as margens do rio Tejo estão a direita virando a esquina ou se é mesmo só pra seguir reto toda a vida, já posso lhes informar, a todos, que a Rua Andrade Corvo fica perto da Praça Saldanha, no Picoas, sei que estou morando agora na Estefânia, perto do Largo, e que pego a Casal Ribeiro para chegar na Cinco de Outubro e seguir reto até a Igreja, mas ainda não sei o nome da Igreja, mas que fica do lado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL que me importa.

Alguns dizem que é andando que se conhece o que se anda. "Eu preciso andar, um caminho só, vou buscar alguém, que eu nem sei quem sou", mas isso não descubro tanto andando, mas sim encontrando e me vendo como me vêem. Espelhos ou pessoas pra me definirem. Para para conhecer o que se anda, mais que andar, é procurar quarto para morar em anúncio de jornal. Quarto partilhado com TV em Benfica, que fica longe daqui, quarto individual barato em Odivelas, que mal aparece no mapa de tão longe, e nem vou falar do quarto confortável e fresco que fica no centro, que dizem até que é perigoso.

Estou descobrindo aliás que Lisboa é a terra do marco zero do conhecimento de qualquer coisa. Eu pelo menos, que sou eu e que eu sou tudo menos Lisboa, vou andando e olhando e a cada olhar nasce uma nova constatação. E acho que era isso que eu queria dizer, sim, que Lisboa é a terra onde nascem as constatações, e crescem desde pequenas com seus olhares mal feitos de preconceitos de não saber como e pra onde olhar porque já olham errado e depois tem que fechar os olhos para não saber o que não se devia. E aí fico nessa de buscar o português comum, o incomum, tento me supreender com o que devia e achar normal o que se acha, descobrir palavras mágicas que puxam botões de ligar e desligar a humanidade das pessoas, ver que entre "faz-favor" e a crueza de um "oi, você sabe me dizer" separa um português simpático de uma virada de olhos que assassina sua existência por quase três ou quatro segundos.

Por enquanto, continuo a olhar para prédios com olhos de surpresa enquanto eles ainda me surpreenderem, a passar de praça em praça vendo monumentos sem nome até que tenham nome e se transformem em pedaços de pedra com nome também conhecidos como referência para se chegar no meu endereço, passando pelo prédio da telefônica e pela estátua do José Fontana, e a me livrar dos gerúndios, que é a primeira coisa que fiz quando cheguei, já que gerúndios não passam pela alfândega em Portugal. Espero comprar novos quando voltar.

E que espero conhecer pessoas que durem mais do que quinze minutos, já que a existência de turistas e de esbarrões nas ruas parece evaporar em contato com o daqui a pouco, ou com aviões que tem que decolar, ou com a próxima esquina onde tenho que ir por aqui mas você segue em frente até a hora de virar a esquerda. Porque ficar nesse ver e não ver mais quem eu sou de quinze em quinze minutos já vai perder a graça e quero ver se duro pelo menos seis meses antes de deixar de ser qualquer coisa de novo.

Volto a escrever quando me encontrar. Talvez, já sem gerúndio nenhum, mas com muitos infinitivos.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Escritos para um dia de vôo

Vou escrever isso em menos tempo do que me cabe. Ou do que cabe para o momento. Mas é isso que os momentos costumam fazer, fazem coisas serem escritas assim na pressa, sem que tenham tempo aonde caibam.

Queria ter ido na despedida de vocês, eu sei, não deu, e na verdade minha vida tem sido ultimamente pouco mais que uma seqüência interminável de despedidas, como se os abraços, beijos, os me-escreva ou me-liga, os espera-que-eu-não-quero-chorar e os droga-já-estou-chorando nunca me fossem suficientes. Não que tenha sido essa a razão por eu não ter ido nas últimas despedidas, sei que não fui porque não deu.

Mas também não deu pra despedir de ninguém. Parece que nenhum até-logo é longo o suficiente para durar seis meses, e que os adeus são muito pouco curtos para não serem para tempo demais. Não consegui achar meio termo, um adeus-breve, ou já-volto-muito-tarde. Falta palavra e isso é chato.

De vocês na verdade não me despeço. É estranho, vocês são meio que um mundo paralelo meu, onde enquanto tudo ficava para trás com minhas seqüëncias de até-breves e tchaus, com vocês eu só dizia oi e olás e como-vais e até-daqui-a-poucos. Vocês são aquilo que fica, e é bom que algo fique, e que sejam vocês, essa coisa meio you-say-goodbye-and-i-say-hello a la beatles.

E a questão agora é pensar naquilo que fica, que é o que não vai. Estou com a mala aberta aqui na minha frente e a questão é a pequenitude das malas, que alguém fez pequenas demais para não serem levadas a sério. São só levadas, com o sério dentro, e depois dele pouca coisa cabe. Cabe umas roupas, uma camisa azul que é meio nova sim mas a outra rasgada que estava pensando em costurar vai acabar ficando por aqui mesmo. E é estranho olhar para essas coisas desistidas. Quando o armário, as estantes, e todos esses depósitos de resíduos da eternidade de nós mesmos ficam ainda. Com tanto. E nós levando tão pouco. O livro que vem, e o deveria vir mas lembrei que não é meu e tenho que devolver, porque sim, tem coisas que não podem esperar que a gente volte. O livro já foi, e outras coisas também vão. De tudo fica um pouco, mas um pouco também vai, e é porque tem que ir.

Então entre o que fica e o que vai, o que eu mando são meus exageros e meus dramas que não pensem que não são também de ansiedade e de olhos fitando o horizonte desesperadamente de minuto a minuto sabendo que a qualquer instante eu vou parar de reconhecê-lo e ele vai ser aquela linha tão horizontal como sempre foi, mas absurdamente diferente. E que isso vai ser fantástico. E que vou me apaixonar pelos nomes de cada rua de cada esquina e bairro onde estarei completamente perdido até o dia em que vou saber das estradas que se cruzam e das mãos que tem contra-mãos, e que ali é o Tejo e não do outro lado como eu achava que era. E que quando eu for voltar, o que vai ficar é o lá que ainda nem veio.

Mas tinha que escrever, e tinha que ser desse jeito, porque acho que só assim eu vou sentir que algo está acontecendo. Porque até acontecer, estarei meio que anestesiado demais para perceber que o que está por vir é qualquer coisa de diferente do que é uma segunda-feira ou uma terça, e que o amanhã não cabe no vocabulário dos dias-da-semana.

"The only baggage you can bring is all that you can't leave behind". U2 (ok, ok, antropólogos não costumam citar U2, mas aqui não teve jeito. vou ver se cito o malinowski da próxima vez...)

Abraço
...e até daqui a pouco: Rhaul, Lucas, Mara, Isabela (que já está lá), Nadja (que também), Thiago e Dani (que vão comigo), Deivison (futuro vizinho), Gabriela, e outros tantos que por ora só conheço por etcetra.

Rafael (Lasevitz)

(meu vôo parte de Brasília para Lisboa pela TAP nesta segunda, dia 10, às 17h55).