quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Inventário

Começou com o garfo, a faca e a colher que com as mãos não dava ainda que na primeira noite a manteiga tenha entrado no pão na base do dedo e o suco bebido na garrafa. Veio também a xícara e eu subverto longas tradições de família todos os dias no suco que bebo de xícara e que minha boca ainda teima em esperar que venha quente como em qualquer coisa de xícara.

Essas eu comprei no chinês. Acho que quando não se sabe onde comprar, compra-se no chinês. E veio de lá a panela também, que chamei de tacho com orgulho de um lusófono já bem articulado às peculiaridades da língua local já no terceiro dia de Lisboa. Mas o vendedor era chinês e não sabia o que era tacho nem muito menos panela. Disse que não tinha e eu fui embora perguntando para uma portuguesa na rua, faz favor, você sabe onde se vendem tachos, sim, claro, aqui no chinês mesmo, mas me disse que não tem, mas tem, ora pois, se não comprei um aqui ontem mesmo?

A panela ou tacho de cinco euros veio com uma grade estranha que não sei para quê serve e acabou sendo maior do que a minha fome. Ou do que o meu arroz ou, enfim, das minhas duas xícaras de água que evaporaram antes e a panela tem uma mancha de queimado até hoje. Cicatriz gastronômica, quem sabe. A frigideira só foi vir alguns dias depois após um hambúrguer frustrado que quase não sobrevive à panela gigante que tentei travestir de frigideira. Nem conto o que tentei fazer com o feijão só de pensar nas palavras que não conheço que a história exige de mim para ser contada. O que conto é que a frigideira veio numa feira do Carnide com mais uma frigideira menor dentro. A maior eu uso como prato de vez em quando, quando os tupperwares, também do chinês, estão ocupados.

Pratos mesmo eu não comprei. Do mercado vieram logo esponja, detergente e papel higiênico que comprei aos montes e depois de um mês me dei conta de que só tinha usado uma vez que essas coisas eu preferia fazer no shopping perto de casa e um dia ainda desenvolvo essa narrativa melhor para transformá-la em alguma espécie de protesto simbólico contra o consumismo mas por ora vou usar o argumento de que era mais prático mesmo e que com o tempo fiz até algumas descobertas, percebi que a música do shopping se repetia todos os dias e sempre no mesmo horário. E comecei a achar que os seguranças olhavam para mim, entrando e saindo, todos os dias, sem comprar nada, às vezes parando em um sofá para ler Saramago que em casa não dava. Me imaginei sendo expulso do shopping, senhor, desculpe, você não pode vir ao shopping somente para usar a casa de banho, você precisa consumir algo, mas eu consumi, comprei um cartão telefônico na semana passada.

Sim, teve o cartão telefônico de cento e vinte minutos que foi embora em vinte depois de trezentas e setenta ligações para anúncios de jornal enquanto eu procurava quarto para alugar. Aliás, seriam cento e vinte se fossem ligações para o Brasil. Para celulares em Portugal, eram só vinte. Depois ainda veio outro cartão que comprei em Évora para ligar pra Bia pra saber onde que eu tava, sim, em Évora, mas praonde vou, Rua do Raimundo, ok, chego lá daqui a pouco, e cheguei depois de um pouco mais porque a Rua do Raimundo ficava do outro lado e não desse.

Então veio o celular que na verdade é telemóvel e que foi o mais barato e que desliga sozinho de vez em quando enquanto eu uso, talvez por greve ou rebeldia que pode sinalizar uma não distante revolução geral dos aparelhos contra os seres humanos. Uma tesoura eu comprei esses dias no chinês por causa da barba porque tesoura trazida na mala do avião era potencial arma terrorista, nunca se sabe. E sim, teve o caso do tênis que não foi nem que tenha aberto algum buraco na sola, é que ele rasgou mesmo. Sabe ali, onde nunca rasga. Pois é. Comprei outro numa C&A que sim, existe em Portugal. Alguns diz em uma loja, não lembro qual. Ele dói no pé esquerdo mas não no direito, o que pode ser uma inclinação política ou algum fator homeopático, não sei ainda. E alguns dizem que é igual ao anterior.

Desodorante ainda não precisei comprar. Os estudantes de intercâmbio recebem um. Dentro de um kit que vem com um manual da faculdade e uma bola de borracha, dessas antiestresse.

Talvez seja esse, afinal, o inventário real das coisas necessárias para um estudante brasileiro em Portugal. Depois de fazer e desfazer malas, trazer o que tinha que vir e deixar para trás aquilo que, de tudo o que nós somos e que guardamos na forma de tralha de nós mesmos, tinha que ficar. E que, de tudo e tanto que ficou, tinha duas coisas que tinham que ser repostas, sei lá, preciso de palavras grandes aqui então vou soltar um pedras refundantes da nossa existência. Aquilo que reiventa a nós mesmos no além-mar. Um desodorante e uma bola de borracha antiestresse, porque sem isso, ah, sem isso não dá.

Um comentário:

.a que congemina disse...

eu enlouqueceria sem uma boa panela pequena, uma leiteira também pequena e uma fabulosa frigideira teflonada.
eu pediria meu kit com esses elementos no lugar da bola de borracha.

(aqui as letras não podem ser roxas. =| )